29/08/23
Redação: Agência Brasil
Imagem: Vanor Correia/ Gov. Rj
Nascida Heliodora Carneiro de Mendonça, a crítica teatral Barbara Heliodora estaria completando nesta terça-feira (29) 100 anos de vida. Também professora, ensaísta, tradutora, ela era reconhecida como uma autoridade na obra de William Shakespeare. Durante muitos anos, foi professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A vice-presidente da Associação Paulista de Críticos de Artes de São Paulo (APCA), Kyra Piscitelli, defende que Barbara Heliodora “foi uma das últimas, senão a última, crítica a lotar ou a esvaziar um teatro. Ela ditava isso. Ela foi a última que conseguiu esse feito. Hoje em dia, não existe isso. Você não mobiliza nesse nível da crítica. A crítica ficou mais careta ou mais amiga. Ficou diferente”, analisou Kyra à Agência Brasil.
Para Kyra, Barbara Heliodora fazia uma crítica mais combativa, menos complacente, “menos conveniente talvez, no sentido de mobilizar os artistas e se mobilizar também”. Disse que mesmo com essa postura, as pessoas respeitavam o que Barbara escrevia. “Porque o que ela escrevia tinha embasamento. Todo mundo queria ler o que ela tinha para falar. As pessoas paravam para lê-la”.
Na avaliação de Kyra Piscitelli, a crítica teatral mudou muito depois dela, prendendo-se a se é bom ou ruim, para que público se destina. Já Barbara Heliodora tinha muito conceito e conteúdo. “Tudo que ela falava era muito embasado. Ia em todos os teatros. Isso é muito importante para um crítico que vai julgar uma coisa. A pessoa tem que estar no lugar. Ela era vista nos espaços. Mesmo antes de se aposentar e até morrer, ela ia no teatro”, lembrou.
Um amigo da vice-presidente da APCA, Alexandre Lima, recebeu a última crítica feita por Barbara Heliodora para o jornal O Globo. “Quando a secretária ligou para avisar que ela iria, Alexandre argumentou que era um teatrinho. Mas a secretária retrucou que não tinha problema e que a dona Barbara sabe. Ela ia a qualquer espaço”.
Medo
De modo geral, os artistas tinham medo de Barbara. Kyra afirmou que essa lenda era pura verdade. A tal ponto que alguns autores se juntaram para escrever a peça alternativa Barbara Não Lhe Adora. A peça ficou em cartaz em 2015, ano da morte da crítica teatral, e fazia uma brincadeira com ela.
A peça conta a história de um grupo de teatro mambembe que, após receber uma resenha negativa da famosa crítica Barbara Heliodora, resolve sequestrá-la. No cativeiro, o grupo faz uma segunda apresentação para a crítica, mostrando a encenação em detalhes. O preço do resgate é a publicação de uma nova resenha, mas que, desta vez, tem de ser positiva.
“Ao mesmo tempo em que Barbara era temida, as pessoas queriam ler sobre ela. E o que é muito interessante na crítica da Barbara, e que se perdeu um pouco hoje, talvez, é que ela escrevia nomes de todos, desde o pipoqueiro do teatro, o contrarregra, toda a equipe. Estava todo mundo contemplado. Isso é muito importante também porque a ideia do teatro é um tudo”, explicou.
“Para mim, principalmente, ela é uma inspiração, principalmente porque é mulher. Uma mulher ter pegado esse lugar no tempo que ela pegou, isso é muito importante. Ela era respeitada. Não era atriz, mas era muito respeitada pela classe artística, porque ela ia ao teatro.”
Barbara Heliodora encerrou uma era do teatro. Tinha uma seriedade e uma notoriedade que lhe permitiam falar o que pensava exatamente. “Eu não conheço uma crítica pós-Barbara Heliodora que tem esse carimbo de falar com essa imparcialidade”, comentou Kyra. Admitiu que na época de Barbara, os textos eram maiores, havia mais espaço. Mas Kyra não vê um substituto para ela. “Tem uma coisa que é da pessoa. O carisma é intransferível. E ela, de alguma forma, tinha isso.”
Biografia
Barbara Heliodora nasceu no Rio de Janeiro, filha mais nova de Anna Amélia e Marcos Carneiro de Mendonça. Iniciou sua carreira em 1958, aos 35 anos, como crítica teatral da Tribuna da Imprensa. De 1958 a 1964, assinou a coluna especializada do Jornal do Brasil, ganhando respeito graças à seriedade e à erudição dos seus artigos. Depois de se aposentar da UFRJ, em 1985, voltou a exercer, no ano seguinte, a crítica jornalística na revista Visão, passando depois para o jornal O Globo, onde se estabeleceu.
Com vários livros publicados, ela decidiu deixar o cargo em janeiro de 2014, aos 90 anos. Barbara foi internada no Hospital Samaritano, em Botafogo, zona sul do Rio, em 23 de março de 2015. Morreu no dia 10 de abril daquele ano. Deixou três filhas, de dois casamentos, e quatro netos. Foi cremada no Memorial do Carmo, no Cemitério do Caju, no Rio.
Diretor teatral
“Barbara era minha amiga, porque nós fomos críticos na mesma época”, disse à Agência Brasil o diretor teatral Flavio Marinho. Barbara acabou sucedendo Flavio, após este ter encerrado a profissão de crítico de teatro após 14 anos. “Éramos muito amigos. Eu frequentava a casa dela e ela a minha. Ela foi para mim muito importante porque acompanhou todo o meu trabalho quando larguei a crítica e passei a escrever sobre teatro e para teatro.”
Flavio Marinho lembra que Barbara Heliodora foi uma espectadora muito atenta do seu trabalho e apontava o seu crescimento, os detalhes, sempre com precisão. “Em termos pessoais, ela foi ótima. Ela via tudo, cobria todas as peças, mapeava o movimento teatral carioca com muita dedicação, o que nós não temos mais hoje em dia e faz muita falta. A Barbara faz falta em todos os sentidos”, concluiu o diretor.
Professora brava
Uma professora brava. Essa é a imagem que a atriz e diretora Cristina Pereira tem de Barbara Heliodora. “Eu lembro dela com carinho, embora os atores tivessem pavor dela. Ficavam nervosos quando ela ia no teatro. A Barbara está aí!, exclamavam. Dava um frio na barriga.”
Cristina Pereira sempre considerou Barbara uma mulher muito culta mas, ao mesmo tempo, passava a imagem de uma professora brava “que a gente lembra para o resto da vida, a gente vai lembrar sempre, com carinho”. Barbara só elogiou o trabalho de Cristina Pereira como atriz quando esta trabalhou em cinco comédias de Flavio Marinho.
Mas não apreciava peças em que os atores comentassem sobre a obra de escritores, como a que Cristina fez, com base em texto da própria Cristina e de Teresa Monteiro, intitulado Entre o Céu e o Inferno, sobre a obra de Gil Vicente. “Ela não gostava do olhar de atores sobre escritores famosos. Preferia que eles encenassem peças do autor, em vez de comentarem sua obra. Na crítica, Barbara Heliodora indagou por que Cristina Pereira não está fazendo uma peça de Gil Vicente, em vez de fazer sobre a obra de Gil Vicente?”
Para Cristina, a crítica de Barbara era sempre uma visão de professora. “Ela tinha opinião só dela, mas eu nunca me senti ofendida pela Barbara. Lembro dela com carinho.”